domingo, 10 de maio de 2015

Prática reflexiva em educação musical



Às vezes as árvores não nos deixam ver a floresta

(Zabala)


Desde a implantação da Nova Lei 11.769, de 18 de agosto de 2008, que determina a obrigatoriedade do ensino de música nas escolas regulares, a literatura na área da pedagogia da música, afora outras áreas afins, foi fortemente impulsionada. Publicações envolvendo desde a prática até os fundamentos que as alicerçam têm buscado seu lugar na formação de professores de música, não somente da escola regular, mas dos diversos contextos onde se ensina música, mas esbarram em questões de ordem filosófica. Até que ponto o profissional não especializado em música está apto e disposto a enveredar profundamente no processo reflexivo necessário para realização de aulas musicalmente com qualidade? Até que ponto, por outro lado, os profissionais especializados se interessam pela reflexão, quando o comodismo de perpetuar sua forma de ensinar é menos doloroso que o processo de transformação e adequação às exigências pedagógicas, afetivas e tecnológicas impostas pela atualidade educacional? Quem precisa e para que serve a reflexão em educação musical, afinal? Há um perfil de professor adequado à prática reflexiva? Eu, particularmente, acredito que sim!
Acredito que há profissionais do ensino que estão professores, o que difere daqueles que são professores. Sempre disse isso aos meus alunos licenciandos! Isso independe de ter ou não formação específica para ensinar música. É uma questão de comprometimento com a escolha profissional realizada. O primeiro grupo, dos que estão professores, normalmente opta pelo ofício docente devido à falta de opção no mercado de trabalho, quando concluem a graduação. O Brasil não oferece, citando um exemplo isolado, amplo campo à carreira de performer, o que leva, quase sempre, esse profissional a escolher a docência, cuja demanda de vagas é constante. O segundo grupo, dos que são professores, engloba aqueles que veem, na docência, sua missão e vocação, independente da sua formação inicial para tal. Esses profissionais têm uma tendência a investir constantemente em sua formação, e alimentar-se da prática reflexiva.
Não pretendo generalizar a questão – embora o panorama descrito acima seja uma constatação pessoal real; porém, não se pode duvidar que um dos objetivos a que almeja qualquer profissional de qualidade é a necessidade de ser cada vez mais competente naquilo que faz, e não sei o quanto aqueles que estão professores se interessam pelo investimento na própria competência – para não dizer na dos seus alunos!
A maneira pela qual um professor se torna cada vez melhor naquilo que faz é combinando o conhecimento e a experiência, que se retroalimentam. O conhecimento advém da investigação, de teorias, de modelos, do contato com outros professores e da reflexão sobre tal; a experiência constrói-se pela prática em si, mas também pelo conhecimento e pelas variáveis que nele intervêm, sendo a experiência ela mesma uma ferramenta para dominar essas variáveis (Zabala, 1998). Porque como nos diz Zaragozà (2009, p. 18), “sabemos como começaremos uma aula, mas não podemos assegurar como ela irá terminar, o que irá acontecer durante a interação e, finalmente, o que os alunos irão aprender do que pretendemos ensinar”.
O que pretendo dizer é que não é admissível, sob essa ótica, o professor ir para a sala de aula com uma lista de atividades e esperar aplicá-las uma a uma, como um receituário, esperando, também, determinadas respostas dos alunos. É preciso permitir que as variáveis incidam sobre o complexo ensino-aprendizagem, e elas abarcam inúmeras questões que compõem, desde a recepção afetiva dos alunos até a recepção cognitiva ao que lhes é proposto, entremeada pelas questões estruturais, curriculares e pedagógicas da escola. Tais questões são determinantes ou influenciam sobremaneira a forma como os conteúdos são ensinados, se integram com os conhecimentos e experiência prévios dos alunos e, consequentemente, como e o quanto lhes serão significativos, possibilitando aprendizagens duradouras. Quando o professor toma consciência da atuação dessas variáveis no processo de ensino, ele certamente está aberto a refletir sobre elas e sobre o impacto delas em sua transposição didática e entorno educacional.
A prática reflexiva é, portanto, o processo que possibilita ao docente desviar-se da linearidade do ensino repetidor e inserir-se numa forma de ensino articulada em redes complexas de interação entre teoria e prática, conhecimento e experiência, afetividade e cognição, ação e reflexão, para não citar outros mais. Esses componentes possibilitam ao professor basear sua práxis em uma metodologia e didática sistemáticas, baseadas no pensamento consciente e construídas pelo entrelaçamento de diferentes saberes, dos factuais aos atitudinais.
As razões que me levaram a escrever este texto coincidem com a minha crença de que não existe Educação Musical (nem tampouco Educação) sem reflexão e construção metodológica e didática sistemática. A reflexão, por um lado, denota um profissional autônomo e responsável, capaz de refletir na ação, sobre a ação e sobre a reflexão na ação (Schön, 2000). A construção metodológica e didática sistemática, por outro, visa romper o paradigma do docente que busca o ponto de partida e o fim do ensino de música na sua prática, sem (pre)ocupar-se em alimentá-la, mais do que de teorias, de relações construídas entre essas e a prática diária do ensino de música, inclusive aquelas realizadas por outros docentes.
Arrisco dizer, pois, que os dois aspectos – a reflexão e a construção metodológica e didática - assumem, na práxis docente, uma dependência recíproca, dinâmica e em constante construção. A reflexão tem boas chances de impedir que o professor dependa de receitas prontas, que se preocupe apenas em colecionar atividades, exercícios e canções que foram utilizados por outros profissionais em contextos e situações específicos, sem repensá-los para a sua prática (Duque, in Zaragozà, 2009). A reflexão gera, ainda, a necessidade de um planejamento metodológico e didático, que por sua vez, é produto da constante reflexão. O planejamento metodológico e didático é construído e reconstruído, portanto, pela reflexão.  Entendo, assim, que a construção metodológica e didática é flexível e se edifica a cada contexto, a cada turma, a cada aula. Construir uma metodologia e uma didática para o ensino da música não se resume, portanto, em acumular métodos, atividades, técnicas e procedimentos – o que sugere linearidade -, mas em entrelaçá-los de modo consciente, revê-los sempre que oportuno, (re)criá-los, questioná-los, adaptá-los ou até modifica-los, se preciso for.
Como a epígrafe do texto, se o professor sempre encara a aula de música da mesma forma, sob a mesma conduta, alicerçada sobre as mesmas práticas, esperando sempre os mesmos resultados, privando-se de contextualizar o planejamento e a ação em um âmbito diverso, mutante, aberto e flexível (ou seja, concentra-se somente em sua árvore), corre o risco de cegar-se para a multidimensionalidade da prática de ensinar e aprender (deixa de ver a floresta). Além disso, fecha os olhos para a diversidade que é a comunidade da sala de aula, com as experiências e aprendizados individuais. Fecha os olhos para as variáveis do entorno educacional, e na tentativa de controlar o ambiente de ensino, o “espírito criador que duvida, procura, investiga e pesquisa” é trocado pela “estagnação, rotina, sistematização rígida dos princípios e proclamação do valor absoluto” (Koellreutter, 1984). Em consequência, impede-se de uma profunda compreensão da realidade educativa que pretende transformar, porque se priva de se reinventar como docente, ao deixar de se perguntar “por que faço o que faço e da forma como faço?” (Duque, in Zaragozà, 2009).
Parece-me oportuno, então, perguntar: o que deve ser permanente na práxis do ensino de música, de modo a orientá-la sempre para um ensino musical de qualidade, significativo e, portanto, duradouro?

Referências

Koellreutter, Hans J. O esírito criado e o ensino pré-figurativo [1984] [Apresentação em aulas inaugurais da Escola de Música da UFMG e da Faculdade Santa Marcelina]. Cadernos de Estudo: educação musical. Kater, Carlos, (org.). Belo Horizonte, Atravez/EMUFMG/FEA/FAPEMIG, 1997, pp. 53-59.

Schön, Donald A. Educando o profissional reflexivo: um novo design para para o ensino e a aprendizagem. Trad. Roberto Cataldo Costa. Porto Alegre, Artmed, 2000.

Zabala, Antoni. A prática educativa. Como ensinar. Trad. Ernani F. da F. Rosa. Porto Alegre: Artmed, 1998.

Zaragozà, Josep Lluis. Didáctica de la música en la educación secundaria. Competencias docentes y aprendizaje. Barcelona: Editorial Graó, 2009.






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