Às vezes as árvores
não nos deixam ver a floresta
(Zabala)
Desde a implantação da Nova Lei
11.769, de 18 de agosto de 2008, que determina a obrigatoriedade do ensino de
música nas escolas regulares, a literatura na área da pedagogia da música,
afora outras áreas afins, foi fortemente impulsionada. Publicações envolvendo
desde a prática até os fundamentos que as alicerçam têm buscado seu lugar na
formação de professores de música, não somente da escola regular, mas dos
diversos contextos onde se ensina música, mas esbarram em questões de ordem filosófica.
Até que ponto o profissional não especializado em música está apto e disposto a
enveredar profundamente no processo reflexivo necessário para realização de
aulas musicalmente com qualidade? Até que ponto, por outro lado, os
profissionais especializados se interessam pela reflexão, quando o comodismo de
perpetuar sua forma de ensinar é menos doloroso que o processo de transformação
e adequação às exigências pedagógicas, afetivas e tecnológicas impostas pela
atualidade educacional? Quem precisa e para que serve a reflexão em educação
musical, afinal? Há um perfil de professor adequado à prática reflexiva? Eu,
particularmente, acredito que sim!
Acredito que há profissionais do
ensino que estão professores, o que
difere daqueles que são professores. Sempre
disse isso aos meus alunos licenciandos! Isso independe de ter ou não formação
específica para ensinar música. É uma questão de comprometimento com a escolha profissional
realizada. O primeiro grupo, dos que estão
professores, normalmente opta pelo ofício docente devido à falta de opção no
mercado de trabalho, quando concluem a graduação. O Brasil não oferece, citando
um exemplo isolado, amplo campo à carreira de performer, o que leva, quase sempre, esse profissional a escolher a
docência, cuja demanda de vagas é constante. O segundo grupo, dos que são professores, engloba aqueles que veem,
na docência, sua missão e vocação, independente da sua formação inicial para
tal. Esses profissionais têm uma tendência a investir constantemente em sua
formação, e alimentar-se da prática reflexiva.
Não pretendo generalizar a questão –
embora o panorama descrito acima seja uma constatação pessoal real; porém, não
se pode duvidar que um dos objetivos a que almeja qualquer profissional de
qualidade é a necessidade de ser cada vez mais competente naquilo que faz, e
não sei o quanto aqueles que estão
professores se interessam pelo investimento na própria competência – para não
dizer na dos seus alunos!
A maneira pela qual um professor se
torna cada vez melhor naquilo que faz é combinando o conhecimento e a
experiência, que se retroalimentam. O conhecimento advém da investigação, de
teorias, de modelos, do contato com outros professores e da reflexão sobre tal;
a experiência constrói-se pela prática em si, mas também pelo conhecimento e
pelas variáveis que nele intervêm, sendo a experiência ela mesma uma ferramenta
para dominar essas variáveis (Zabala, 1998). Porque como nos diz Zaragozà
(2009, p. 18), “sabemos como começaremos uma aula, mas não podemos assegurar
como ela irá terminar, o que irá acontecer durante a interação e, finalmente, o
que os alunos irão aprender do que pretendemos ensinar”.
O que pretendo dizer é que não é
admissível, sob essa ótica, o professor ir para a sala de aula com uma lista de
atividades e esperar aplicá-las uma a uma, como um receituário, esperando,
também, determinadas respostas dos alunos. É preciso permitir que as variáveis incidam
sobre o complexo ensino-aprendizagem, e elas abarcam inúmeras questões que
compõem, desde a recepção afetiva dos alunos até a recepção cognitiva ao que
lhes é proposto, entremeada pelas questões estruturais, curriculares e
pedagógicas da escola. Tais questões são determinantes ou influenciam
sobremaneira a forma como os conteúdos são ensinados, se integram com os conhecimentos
e experiência prévios dos alunos e, consequentemente, como e o quanto lhes serão
significativos, possibilitando aprendizagens duradouras. Quando o professor toma
consciência da atuação dessas variáveis no processo de ensino, ele certamente
está aberto a refletir sobre elas e sobre o impacto delas em sua transposição
didática e entorno educacional.
A prática reflexiva é, portanto, o
processo que possibilita ao docente desviar-se da linearidade do ensino
repetidor e inserir-se numa forma de ensino articulada em redes complexas de
interação entre teoria e prática, conhecimento e experiência, afetividade e
cognição, ação e reflexão, para não citar outros mais. Esses componentes
possibilitam ao professor basear sua práxis em uma metodologia e didática
sistemáticas, baseadas no pensamento consciente e construídas pelo
entrelaçamento de diferentes saberes, dos factuais aos atitudinais.
As razões que me levaram a escrever
este texto coincidem com a minha crença de que não existe Educação Musical (nem
tampouco Educação) sem reflexão e construção metodológica e didática
sistemática. A reflexão, por um lado, denota um profissional autônomo e
responsável, capaz de refletir na ação,
sobre a ação e sobre a reflexão na ação (Schön, 2000). A construção
metodológica e didática sistemática, por outro, visa romper o paradigma do
docente que busca o ponto de partida e o fim do ensino de música na sua prática,
sem (pre)ocupar-se em alimentá-la, mais do que de teorias, de relações
construídas entre essas e a prática diária do ensino de música, inclusive
aquelas realizadas por outros docentes.
Arrisco dizer, pois, que os dois
aspectos – a reflexão e a construção metodológica e didática - assumem, na
práxis docente, uma dependência recíproca, dinâmica e em constante construção.
A reflexão tem boas chances de impedir que o professor dependa de receitas
prontas, que se preocupe apenas em colecionar atividades, exercícios e canções
que foram utilizados por outros profissionais em contextos e situações
específicos, sem repensá-los para a sua
prática (Duque, in Zaragozà, 2009). A
reflexão gera, ainda, a necessidade de um planejamento metodológico e didático,
que por sua vez, é produto da constante reflexão. O planejamento metodológico e
didático é construído e reconstruído, portanto, pela reflexão. Entendo, assim, que a construção metodológica
e didática é flexível e se edifica a cada contexto, a cada turma, a cada aula. Construir
uma metodologia e uma didática para o ensino da música não se resume, portanto,
em acumular métodos, atividades, técnicas e procedimentos – o que sugere
linearidade -, mas em entrelaçá-los de modo consciente, revê-los sempre que
oportuno, (re)criá-los, questioná-los, adaptá-los ou até modifica-los, se
preciso for.
Como a epígrafe do texto, se o
professor sempre encara a aula de música da mesma forma, sob a mesma conduta,
alicerçada sobre as mesmas práticas, esperando sempre os mesmos resultados,
privando-se de contextualizar o planejamento e a ação em um âmbito diverso,
mutante, aberto e flexível (ou seja, concentra-se somente em sua árvore), corre o risco de cegar-se
para a multidimensionalidade da prática de ensinar e aprender (deixa de ver a floresta). Além disso, fecha os
olhos para a diversidade que é a comunidade da sala de aula, com as
experiências e aprendizados individuais. Fecha os olhos para as variáveis do
entorno educacional, e na tentativa de controlar o ambiente de ensino, o
“espírito criador que duvida, procura, investiga e pesquisa” é trocado pela
“estagnação, rotina, sistematização rígida dos princípios e proclamação do
valor absoluto” (Koellreutter, 1984). Em consequência, impede-se de uma
profunda compreensão da realidade educativa que pretende transformar, porque se
priva de se reinventar como docente, ao deixar de se perguntar “por que faço o
que faço e da forma como faço?” (Duque, in
Zaragozà, 2009).
Parece-me oportuno, então, perguntar:
o que deve ser permanente na práxis do ensino de música, de modo a orientá-la
sempre para um ensino musical de qualidade, significativo e, portanto,
duradouro?
Referências
Koellreutter, Hans J. O esírito criado e o ensino pré-figurativo [1984] [Apresentação em aulas inaugurais da Escola de Música da UFMG e da Faculdade Santa Marcelina]. Cadernos de Estudo: educação musical. Kater, Carlos, (org.). Belo Horizonte, Atravez/EMUFMG/FEA/FAPEMIG, 1997, pp. 53-59.
Schön, Donald A. Educando o profissional reflexivo: um novo design para para o ensino e a aprendizagem. Trad. Roberto Cataldo Costa. Porto Alegre, Artmed, 2000.
Zabala, Antoni. A prática educativa. Como ensinar. Trad. Ernani F. da F. Rosa. Porto Alegre: Artmed, 1998.
Zaragozà, Josep Lluis. Didáctica de la música en la educación secundaria. Competencias docentes y aprendizaje. Barcelona: Editorial Graó, 2009.
Referências
Koellreutter, Hans J. O esírito criado e o ensino pré-figurativo [1984] [Apresentação em aulas inaugurais da Escola de Música da UFMG e da Faculdade Santa Marcelina]. Cadernos de Estudo: educação musical. Kater, Carlos, (org.). Belo Horizonte, Atravez/EMUFMG/FEA/FAPEMIG, 1997, pp. 53-59.
Schön, Donald A. Educando o profissional reflexivo: um novo design para para o ensino e a aprendizagem. Trad. Roberto Cataldo Costa. Porto Alegre, Artmed, 2000.
Zabala, Antoni. A prática educativa. Como ensinar. Trad. Ernani F. da F. Rosa. Porto Alegre: Artmed, 1998.
Zaragozà, Josep Lluis. Didáctica de la música en la educación secundaria. Competencias docentes y aprendizaje. Barcelona: Editorial Graó, 2009.
Nenhum comentário:
Postar um comentário
Sua postagem será enviada ao moderador para aprovação. Aguarde! Obrigada!
Observação: somente um membro deste blog pode postar um comentário.