quarta-feira, 13 de maio de 2015

O jogo psicológico em música: o Modelo C(L)A(S)P e sua tradução (infeliz) para (T)EC(L)A


A experiência musical decorrente das atividades musicalizadoras se aplica à aula de instrumento ou à aula coletiva (coral, musicalização, flauta doce, bandas, dentre outros). Isso significa que o contexto musicalizador é amplo, oferecendo ferramentas que podem e devem ser aproveitadas nas demais práticas musicais.
Quase sempre presenciamos atividades em que um modelo rítmico e/ou melódico, por exemplo, é aprendido, imitado, e reproduzido. Pronto! E a aula de música ou aquela atividade chega ao fim! Na aula de instrumento, ensinamos uma música para o aluno, de partitura ou por imitação, e damos o trabalho por encerrado. Se ele acertou as notas, normalmente nos damos por satisfeitos, ávidos que estamos pela próxima lição. E assim ensinamos nossos alunos a acreditarem que a aula de música é isso, que tocar um instrumento é isso. SÓ ISSO!!! 

Onde fica a criatividade, a espontaneidade e a fomentação de ideias neste modelo?

Essas características são amplamente defendidas no campo na educação musical como sendo objetivos a serem alcançados na formação musical de quem se dedica a aprender música. Ora, mas não parece paradoxal que elas sejam apontadas como necessárias, mas sejam comumente esquecidas dentro da prática da educação musical?

Para que possamos manter na lembrança o que é essencial para preservar estas características, devemos nos ater ao jogo psicológico e às suas implicações para o aprendizado musical. 

O jogo psicológico revela a forma como articulamos ideias enquanto agimos. Quando tocamos, jogamos com as possibilidades interpretativas, acomodando-nos às indicações da partitura, mas adicionando um componente pessoal, fruto de nossa experiência com a música. Então perguntamos: uma criança que iniciou suas aulas há pouco, consegue jogar com as possibilidades interpretativas? Minha resposta é categórica: SIM. Como? Simplesmente porque esse jogo surge, primeiramente, da percepção intuitiva. Observe como a criança, à medida que repete a música, adquire mais controle do material musical nela contido. Esse controle possibilita a ela fazer algumas modificações na forma de produzir o som. São, por vezes, transformações sutis, mas nós, educadores musicais, temos que estar atentos a elas. Elas são janelas abertas para que exploremos uma ampla experiência musical com os alunos. Algum tempo depois, a criança consegue brincar com a extensão da música, fazer escolhas de intensidade, claro, desde que mostremos esse universo a ela. Depois, consegue alterar o andamento, procurando ajustes que lhe pareçam soar bem. E assim por diante...
Quando compomos, jogamos com as possibilidades musicais quando escolhemos o material musical com que vamos compor, quando escolhemos o andamento, a altura (qual oitava tocar), o trabalho temático, as separações das seções e/ou das frases, a agógica e o caráter da composição. Quando escolhemos se haverá pedal, no caso do piano, ou se usaremos o arco ou pizzicato, no caso das cordas. Quando decidimos por contrastes ou não. Acelerandos, crescendos, rallentandos, fermatas para dar um suspense no meio da seção. Puxa! Quanta coisa! É por isso que a composição é eleita pelos psicólogos cognitivos da música como o carro-chefe do fazer musical, pois ela é, em tese, aquela modalidade que permite a plena exploração e exercício do jogo! Além disso, compomos com aquilo que nos é acessível. Ninguém vai inventar música com material musical e técnica que não domine! Assim, a composição é o reflexo mais genuíno de nosso interior, é nosso conhecimento intuitivo vindo à tona, com suas múltiplas faces de jogo imaginativo.
Quando escutamos, jogamos com as possibilidades musicais quando, no ato apreciativo, as frases vão-se conectando, formando metáforas de nossos sentimentos e trazendo outros para o campo de nossa percepção. Ou quando um elemento surpresa nos transporta para outra dimensão do jogo mental. Repare que nunca escutamos a mesma música da mesma forma, por duas ou mais vezes, seguidas ou não. Há épocas em que preferimos um estilo, uma música, e outras épocas, outros estilos, outras músicas... Isso significa que a nossa capacidade de jogar mentalmente com as possibilidades musicais enquanto escutamos música flutua deliciosamente e se transforma enquanto adquirimos experiência musical. Isso é fascinante!!!
A importância do jogo psicológico no fazer musical é tão notória que alguns autores se dedicaram a estudá-lo profundamente (Keith Swanwick, David Hargreaves e François Delalande, os principais).
Especialmente Swanwick incorporou essas três modalidades do fazer musical em uma filosofia de educação musical que gerou o Modelo de ensino a que ele denominou C(L)A(S)P. O que seria isso?
Vimos que a composição, a apreciação e a performance são consideradas fundamentais enquanto sustentáculos da experiência musical ativa. Elas revelam nossa compreensão musical e permitem o pleno exercício do jogo, necessário ao fomento da espontaneidade, da imaginação e da criatividade. Além disso, elas são as vias de acesso direto à música, elas são as formas de expressão do nosso comportamento musical. Por isso, essas modalidades são entendidas, por Swanwick, como interativas, e devem integrar um currículo de educação musical por essas razões. Mais do que justificado, não?
Assim surgiu a concepção do Modelo C(L)A(S)P. As atividades de composição, apreciação e performance são, para ele, centralizadoras da experiência musical ativa, ladeadas pelas atividades periféricas (e por isso, entre parênteses) de literatura e skill (que serão definidas mais adiante). A idéia do autor é que esses cinco parâmetros (as cinco letras) sejam trabalhados de maneira integrada na aula de música, permitindo um equilíbrio que se reflita em ampla possibilidade curricular. É por isso que as letras C, A e P são distribuídas de maneira equilibrada no Modelo, e cercadas pelas letras L e P.
No Brasil, o Modelo foi traduzido para (T)EC(L)A. As pessoas que traduziram o Modelo, por certo, desconheciam seus fundamentos psicológicos e filosóficos, a ponto de acreditarem que a tradução era meramente um facilitador em termos de idioma (embora essa justificativa não proceda). Essa tradução desenrola alguns pontos de questionamento. Vamos entender?
  
O MODELO C(L)A(S)P E A TRADUÇÃO PARA (T)EC(L)A

Conforme eu disse anteriormente, de acordo com França e Swanwick (2002, p. 17), a centralidade da experiência musical ativa deve acontecer por meio das modalidades de composição, apreciação e performance. Subsidiando essas modalidades, apresentam-se as atividades de suporte, e periféricas: literatura (qualquer informação notacional, teórica, biográfica e analítica sobre música) e as habilidades ou skill (toda e qualquer informação técnica e aquisição de habilidades que contribuam para o controle dos sons). O fato de serem periféricas não deprecia aquelas atividades, mas as coloca como complementos (necessários) à experiência musical integradora proporcionada pela C, A, P.
Composição, apreciação e performance constituem os aspectos centrais do fazer musical, pilares da experiência musical, e são distribuídos equilibradamente no Modelo. As atividades (L) e (S) são consideradas periféricas. Não existe hierarquia entre C, A e P, mas sim entre essas modalidades e o (L) e o (S). 
Por isso, o Modelo assume o formato das letras assim distribuídas:
Quando se traduz o Modelo para (T)EC(L)A, entretanto, a centralidade da experiência musical ativa é comprometida. As atividades periféricas (L) e (S), traduzidas para técnica e literatura, parecem então dominar o Modelo, circundadas de maneira não equilibrada pelas modalidades de execução, composição e apreciação. Além disso, percebo que a técnica e a execução ficam pareadas, transparecendo uma filosofia distinta daquela defendida pelo Modelo, ao mesmo tempo que parece prescindir, especialmente, da apreciação. Muitos currículos e professores assumem o (L) e o (S) como prioridade em suas práticas substituindo a experiência ativa por anotações teóricas e pela prioridade técnica.
A tradução do C(L)A(S)P para (T)EC(L)A altera a forma gráfica do Modelo, que traduz uma concepção filosófica e hierárquica na experiência musical. Altera-lhe, ainda, a sua lógica interna, e distorce sua fundamentação teórica.
Quero frisar, aqui, uma frase de França e Swanwick (2002, p. 18), para entendermos efetivamente o Modelo C(L)A(S)P e darmos continuidade aos nossos estudos de fundamentação da prática pedagógica em música:



"É preciso salientar ainda que o Modelo C(L)A(S)P não é um método de educação musical, nem um inventário de práticas pedagógicas. O Modelo carrega uma visão filosófica sobre a educação musical, enfatizando o que é central e o que é periférico (embora necessário) para o desenvolvimento musical".   

 Quando começo a refletir sobre a tradução, lembro-me de ter aprendido música com base num modelo tecnicista, tal como sugere a tradução (T)EC(L)A. Tocar e desenvolver os dedos eram minha meta no aprendizado do piano, porque, desde menina, me ensinaram que era assim. Eu amava inventar músicas, mudar os arranjos daquelas que tocava de partitura, descobrir sonoridades novas e inusitadas no silêncio solitário da sala da minha casa, pois no conservatório, só havia espaço para tocar tal como a partitura... Escalas, estudos, sonatas, técnica pura, essa era minha aula de música! Também não me lembro de ouvir música com freqüência na minha trajetória como aluna, muito menos de fazê-la com espontaneidade...
Pergunto, para finalizarmos com ares reflexivos:
Onde fica a centralidade da experiência musical ativa na tradução do Modelo para TECLA?
Como ficam os princípios filosóficos que sustentam o Modelo na tradução?
Qual a necessidade de uma tradução para uma sigla que reúne singularmente princípios de uma educação musical integradora e equilibrada? 

Referências

FRANÇA, Cecília C; SWANWICK, Keith. Composição, apreciação e performance na educação musical: teoria, pesquisa e prática. Em Pauta. Revista do Programa de Pós-graduação em Música da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, v. 13, n.21, dez. 2002, p. 6-41.


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